domingo, 18 de março de 2012



 O VENDEDOR DE ÓLEO DE BALEIA E O HUMOR COM NEGRO.

A semana passada foi marcada pela grande repercussão e polêmica envolvendo o show de piadas Proibidão e a reação do músico negro Raphael Lopes, que mesmo trabalhando no evento como integrante da banda da casa noturna onde se realizou o stand-up chamou a polícia e deu publicidade ao caso por ter se sentido atingido moralmente onde numa “piada” foi comparado a um macaco.

Por dever de ofício fui envolvido diretamente na polêmica e dei diversas entrevistas para alguns dos mais importantes veículos de comunicação, contudo, não poderia deixar de manifestar, no meu espaço, o que o penso sobre o velho tema: racismo versus liberdade de expressão.

A liberdade de expressão, especialmente quando se trata de manifestação artística ou política é a mais importante exteriorização da democracia e orgulhosamente integro o grupo de brasileiros que enfrentou a ditadura militar para que ela fosse restabelecida integralmente no Brasil. Portanto, para essa garotada que hoje faz apresentações públicas, sou um dos milhões de brasileiros que se insurgiram a censura e ao impedimento da livre manifestação do pensamento.

Só que garantimos também que no Brasil a dignidade da pessoa humana seja um dos fundamentos do estado democrático de direito, de maneira tão importante e veemente, que ela foi colocada como a terceira alínea do artigo primeiro da Constituição Federal.

E mais, para comprovar a não aceitação de qualquer forma de discriminação ou racismo, repetiu-se tais mandamentos nos artigos 3º, 4º e 5º, exatamente nos títulos dos princípios (I) dos direitos e garantias (II) fundamentais onde também estão consagrados os direitos de liberdade de pensamento e de expressão a que se referem os realizadores do espetáculo para, inclusive, de maneira ilegal, exigir a assinatura da platéia em um documento em que, a rigor, aceitavam que seus direitos constitucionais fossem invalidados em relação ao que ali se realizava. Um absurdo!

Não se pode NUNCA, nem mesmo o seu titular, ainda que por documento, abrir mão da dignidade humana. Esta, como a vida é um direito indisponível.

E o que o vendedor de óleo de baleia tem a ver com essa questão?

Durante os séculos 18 e 19 a iluminação das ruas era feita com óleo de baleia e, certamente, havia muitas pessoas que se beneficiavam economicamente desse mercado, até que surgiram duas novas alternativas de iluminação: a gás e a querosene, que foram adotadas no Brasil e em muitos outros países.

De uma hora para outra o mercado de óleo de baleia acabou e os comerciantes desse produto que não se adaptaram as novas regras também se acabaram.

É assim o mundo. Os humoristas brasileiros que necessitam tripudiar sobre, raça, deficiência física, orientação sexual, entre outros, para mostrar a sua “arte” saibam que a nossa sociedade não mais aceita com passividade essa violência contra os direitos humanos e que já é hora de modernizarem suas lamparinas.

Se não tiverem competência para tal retirem-se e procurem os programas sociais de reinclusão profissional para que não corram o risco de serem encarcerados por racismo ou outra forma inaceitável de discriminação.

domingo, 4 de março de 2012


O comandante negro
Carlos Magno Nazareth Cerqueira



Introdução

É de muitos conhecido o trabalho que desenvolvo há anos com a Polícia Militar do Estado de São Paulo e também, em duas oportunidades, com a Polícia Militar do Distrito Federal, sempre em busca de ajudar a construir um serviço público de segurança que respeite a população negra e outros segmentos históricamente discriminados.

Não tive ainda a oportunidade de trabalhar com a Polícia Militar do Rio de Janeiro, porém, é daquela corporação que tenho o maior exemplo de conduta de um alto oficial negro, o primeiro oficial negro que chegou ao mais alto posto de uma força policial pública no Brasil.

O Coronel PM Carlos Magno Nazareth Cerqueira.

Na pesquisa que realizei sobre o esse importante personagem negro da recente história do Brasil, encontrei um trabalho apresentado por Carlos Nobre – Universidade Candido Mendes – UCAM – que pela qualidade e riqueza de detalhes sobre a vida desse importante homem negro, tomo a liberdade de publicar uma parte recomendando a sua leitura completa no endereço ao final citado.


O coronel Carlos Magno Nazareth Cerqueira ingressou na Polícia Militar em 1954 e nela permaneceu por quase 40 anos, sendo duas vezes comandante-geral da corporação, de 18 de fevereiro de 1983 a 15 de março de 1987, e de 15 de março de 1991 a 01 de janeiro de 1995. Segundo Sérgio da Cruz, também ex-comandante da PM do Rio de Janeiro, o oficial negro exerceu como aspirante a diversas funções e recebeu vários elogios dos superiores. Este talento profissional iria mais à frente tornar-se uma marca do trabalho Nazareth Cerqueira.

Cruz conta que os primeiros chefes de Nazareth Cerqueira já anteviam que ele poderia se tornar um chefe exemplar.

Em sua carreira, além de duas vezes comandante-geral da corporação, Nazareth Cerqueira comandou o 4º.Batalhão de Polícia Militar, em São Cristóvão, o 19º. BPM, em Copacabana. Ainda foi Ajudante Geral, Diretor-Geral de Ensino, Subchefe do Estado-Maior e chefe do Estado-Maior da PM.

Era formado em Psicologia e Filosofia, tendo ainda cursos em Técnica de Ensino, Psicotécnica Militar e fez estágio na Gendarmerie francesa. Serviu na antiga Escola de Formação de Oficiais e no Centro de Formação e Aperfeiçoamento de Oficiais e Aperfeiçoamento de Sargentos. Foi um importante ideólogo militar, que se batia pela novidade no ensino:

“Sempre esteve voltado para a área de ensino. Concebeu e implementou o currículo aberto nos cursos da Escola Superior de Polícia Militar e Aperfeiçoamento de Oficiais que não poderiam ficar amarrados a velhos e ultrapassados modelos. (...) para a Academia de Polícia Militar Dom João VI, idealizou um curso voltado para a formação de profissionais de segurança pública, combatendo tenazmente a grade curricular centrada apenas em matérias militares e na abordagem excessivamente jurídica-acadêmica, em detrimento de outras matérias de interesse profissional”.

Em 18 de fevereiro de 1983, Nazareth Cerqueira assumia o comando-geral da Polícia Militar do Estado do Rio de Janeiro - PMERJ, nomeado Secretário de Polícia Militar pelo governador Leonel Brizola. Era o início de uma trajetória de comando de sucesso e de polêmica numa organização policial bicentenária.

A primeira controvérsia aconteceu porque a sociedade brasileira se deparara com um oficial negro no comando de uma organização encarregada de policiamento ostensivo nas ruas.

A presença de Nazareth Cerqueira como comandante-geral da PM se tornara uma novidade até certo ponto constrangedora, pois colocava em cena novos questionamentos sobre o papel da polícia e da marginalidade num período ainda cheio de amarras, interdições e tensões vindas da regime militar, que ainda mantinha o controle da Polícia Militar em suas mãos.

A “surpresa” da sociedade civil em relação a Nazareth Cerqueira, em certo sentido, se originava pelo fato de as classes sociais em geral estarem acostumadas em  visibilizarem negros como policiais subalternos ou como criminosos. Neste sentido, a imagem de Nazareth Cerqueira, apresentava novos elementos de discussão envolvendo alguns parâmetros, tais como: a violência da polícia contra os negros, prováveis modificações nas técnicas de ação policial e a discussão sobre o emprego dos direitos humanos como política essencial para as ações policiais. As discussões sobre relações raciais, violência e polícia ficaram mais visíveis quando também o coronel negro Jorge da Silva, principal parceiro de Nazareth Cerqueira naquela ocasião, foi nomeado chefe do Estado-Maior da PM, uma espécie de segundo comandante da corporação. Silva expressava as novas tendências, pois era defensor dos Direitos Humanos e estudava polícia e relações raciais, tendo sido premiado com uma monografia sobre a questão racial pela OAB.

A “surpresa” atingiu a tropa, pois parte dos praças e oficiais não imaginaram que o comandante-geral da PM do novo governo fosse negro.

Até aquela data, nunca um oficial negro comandara a mais antiga instituição policial, criada por Dom João VI, em 1809, com o nome de Divisão Militar da Guarda Real de Polícia.

Mesmo tendo tido um curriculum impecável na carreira, naquela conjuntura, era quase que inimaginável dentro da estrutura de poder das organizações militares que um oficial negro pudesse comandá-la. Havia, segundo os oficiais negros, reprodução da discriminação racial na visão de mundo de alguns setores da corporação.

Um major negro ouvido na pesquisa cuja parte aquí reproduzo, sintetiza o impacto que estes setores da corporação tiveram quando Nazareth Cerqueira se tornou comandante-geral da Polícia Militar:

“Quando Nazareth Cerqueira assumiu o comando da Polícia Militar, no primeiro governo Leonel Brizola, houve reação. Lá embaixo, nos recônditos mais distantes da tropa, comentava-se assim: porra, um crioulo comandando, isso não vai dar certo. Como pelo fato dele ser negro, a PM estaria fadada ao insucesso por não ter um comandante branco. Eu lembro que havia pessoas que diziam assim: olha, pode acreditar: se não fizer na entrada, vai fazer na saída. Quando o coronel Jorge da Silva assumiu o Estado-Maior, eles comentaram: porra, agora é dose dupla. (...)  então, era um comandante negro que nunca tinha havido na história da corporação. Não era como hoje, com muitos oficiais negros.“Houve rejeições pela presença de Nazareth Cerqueira no comando, mas depois elas se tornaram quase nulas diante do trabalho que ele realizou na tropa”
 (Depoimento de um coronel negro).


Essas tensões raciais internas nunca se tornaram públicas, mas demonstram que a ascensão de negros em setores estratégicos da vida pública brasileira sempre foi pontuada por relações conflituosas quando se disputa poder, status, prestígio e bens econômicos. No caso de Nazareth Cerqueira, no entanto, havia oficiais brancos que o tinham como um grande policial. Estes oficiais se empenharam para por em prática as novas idéias de segurança pública trazidas pelo primeiro comandante negro da corporação, que chegava ao poder no redemoinho da luta pela redemocratização do país. 

No lado policial, Nazareth Cerqueira se defrontava com um aparelho policial avesso às propostas dos Direitos Humanos fazerem parte da técnica policial. Também parte deste aparelho policial estava envolvida com corrupção e grupos de extermínios, principalmente na Baixada Fluminense.

Neste contexto, Nazareth Cerqueira procurou tornar a PM permeável a participação  da sociedade civil em seus destinos e nas políticas de segurança.

Uma das medidas que causou grande impacto na comunidade negra foi a eliminação de batidas desnecessárias nas ruas e morros do Rio de Janeiro. O negro, deixou de ser suspeito para os policiais, que tinham que ter novos critérios para abordar cidadãos nas ruas.

Foram retrabalhados nas diretrizes de segurança conceitos militares empregados pela PM como “inimigo interno”, que, em geral, era empregado contra os favelados, objetos das batidas. Através de seminários sobre violência e relações raciais, Nazareth Cerqueira introduziu os primeiros estudos sobre a questão da violência policial contra a comunidade negra, trazendo militantes para palestras. Além disso, procurou sistematizar algumas propostas, em estudos internos da corporação, que mais tarde se tornaram elementos substanciais de ação para a nova polícia que a sociedade exigia.

Vamos, aqui, resgatar a fala de ex-oficiais que trabalham com Nazareth Cerqueira em relação a este propósito, o que demonstra que sua obra vai ainda ser citada e referenciada por mais tempo na história da polícia fluminense.

“Ele tinha na cabeça que a polícia é um serviço. Ele levantou a idéia de polícia-serviço em contraposição à idéia de polícia-força. (...) foi muito combatido na época e teve a oportunidade de voltar para um segundo comando e formatar melhor seu projeto.(Tenente-Coronel).

“(...) no primeiro comando, ele estava começando um trabalho prevencionista na corporação. Ele era visto como um brizolista e não como um profissional de polícia. Mas, por que isso? Porque a visão do sistema policial era a visão que o sistema autoritário impôs. Ele foi o único na história da PM que modificou essa idéia de polícia do Estado e de polícia da cidadania. (Major)

“Ele começou um discurso de prevenção quando todo o mundo estava voltado para o combate, para o inimigo interno, para a matança de delinqüentes indiscriminadamente, para a matança de pessoas que não estivessem com suas idéias de acordo com o regime (...) em 1983, ele chegou, ainda com toda essa cultura autoritária incrustada, fez um bom discurso. Era um comandante negro que nunca tinha havido na história da corporação” (Major)

“Acho que a ascensão de negros na PM começou a aparecer desde que o coronel Nazareth Cerqueira começou assumiu o comando (...) é aquele negócio, em cada profissão tem um que sobressai mais que outro, e com certeza, em relação a parte intelectual, ele estava há mil anos-luz na frente de todo o mundo”. (Major)

Conclusão.

De poucos conhecido o Cel. Carlos Magno Nazareth Cerqueira não recebeu ainda o reconhecimento da sua importancia nas relações entre a Polícia Militar e a Comunidade Negra, inclusive pela tensão histórica provocada pelo racismo institucional que influencia as relações de diversos setores no Brasil. Esta materia de autoria do estudioso Carlos Nobre ajudará a conhecer e admirar um dos mais importantes oficiais negros da História do Brasil.

Fonte: bibliotecavirtual.clacso.org.ar/ar/libros/aladaa/nobre.rtf